Esse gosto amargo em sua boca são lágrimas?

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Abro os olhos. Bocejo, suspiro. Espreguiço-me. Levanto-me e caminho, com passos tão leves que mal chego a tocar o piso amadeirado de meu quarto. Abro a porta e deparo-me com a garagem — que, apesar de vazia, continha largado logo embaixo de minha Pickup Truck o que eu realmente buscava. Embalado em um plástico azul, lá estava o meu maior companheiro matinal, logo ao lado dos biscoitos de aveia e do chá de camomila — que já estavam a minha espera sob a mesa da cozinha. Peguei-o, segurando firme em minhas duas mãos. Fugazmente retorno ao interior de minha casa — o frio parecia estar além do habitual em tempos de inverno.
Tomo um gole do chá, e bocejo. Abro o jornal. Más notícias. Más notícias. Más notícias. Suspiro. Minha rotina me desgasta... Há tempos não vou a busca do jornal solfejando meus tão convencionais
lá lá lás. Apenas o contrário ocorre — havia pouco menos de uma semana quando liguei para a redação da Gazeta a fim de cancelar sua assinatura. Isso, definitivamente, me consome.
Em meu emprego, vivo já habitualmente rodeada por calamidades — e tentar solucioná-las é minha função.
Chamo-me Silvana, e, dos quarenta e seis anos de vida que completei no mês passado, ao menos vinte e três foram vivenciados dentro de uma delegacia especializada em criminalidade infanto-juvenil.
Recordo-me como ninguém de cada caso que já passou por minhas mãos — dos mais simples aos mais insensatos e aparentemente insolúveis. Contudo, afirmo com imensa convicção que, de todas as situações já vividas, as que envolvem a educação proveniente dos progenitores são as que mais afetam-me, sugando e prendendo consigo toda a minha atenção. Evidencio, portanto, a história de Jair.
Residente do Morumbi, bairro de classe média alta de São Paulo, Jair nascera em berço de ouro — desconhece o signifcado da palavra "monotonia" com suas viagens anuais para os Estados Unidos, onde hospeda-se confortavelmente em seu próprio apartamento. Sua família jamais enfretara problemas com o financeiro — seu pai, um industrial de quarenta e cinco anos, como consequência, enxergava a Jair somente ao estar com seus tão úteis óculos de lentes cor-de-rosa.
Alguém ausente e receoso por temer a perda do amor do filho — assim era o pai de Jair, que sentia um vazio em seu interior expandido-se frequentemente, como um redemoinho em uma correnteza sem direção. Passou a usar entorpecentes e, para conseguir adquiri-las, furtava objetos e vendia-os à comércios ilegais, como uma constante busca de preencher o buraco negro formado em seu peito.
A incessante busca de Jair, contudo, era por algo que seu pai depositava inteiramente no verde da cédula ao verde d'aura. O material realmente preenchia sua estante — mas somente ela...
Seu coração prosseguia a bater em vão. O tiquetaquear do relógio acoava cada vez mais alto por entre as paredes de seu quarto, fazendo sua cama viver infestada de sedativos tarja-preta, conseguidos ilegalmente através de suas façanhas. Usava-os para adormecer e poder encontrar, em seus sonhos, o que nunca fez parte de sua realidade.
Jair buscou nas drogas o amor inexistente. Procurou a cor no monocromático. Desejou a atenção.
Desejou.
Aguardou.
... suicidou-se.
Fui ao seu enterro, realizado em novembro de 2003, lembro-me como se tivesse ocorrido ontem, onde estive presente não pelo profissionalismo — mas por ter adquirido imenso carinho por aquele menino.
Naquela mesma noite deitei-me, exausta. Em minha mente passavam ideias e mais ideias. Fechei os olhos e adormeci, vencida definitivamente pelo cansaço. Da escuridão, veio a luz: era Jair, mais feliz do que jamais esteve.
Evolui.
Encontrou.
"É evidente que o sol vá voltar amanhã, mais uma vez. Agora... eu sei." — disse-me ele, entre sorrisos e suspiros de alegria.
Desde então, tornou-se habitual a volta de meu solfejar, diariamente, desde que Jair me ensinara algo, com mais intensidade do que todos os conselhos já ouvidos e livros de auto ajuda lidos: a tempestade, apesar de obrigar-nos a mentermo-nos sobre uma cobertura, é passageira. Devemos centrar-nos nos dias ensolarados, quando tempos a opção de nos libertar, fazendo com que os raios de Sol penetrem em nossa pele, liberando sorrisos e embranquecendo auras, como um ato involuntário.
Completamente involuntário...
"O mau da água é que faz-nos afogar. O salva-vidas está sempre lá — quando não está... é porque não queremos vê-lo."